sábado, 15 de março de 2014

"A Volta da Mulher Livro"




A mão aberta e espalmada acariciava mais uma vez aquele dorso,
aquele tronco, aquela pele anunciada em letras douradas. Esperta
e com capas abertas como um paraquedas para amortecer a
própria. Mas a mão do Leitor de nada quis saber e enfiou-a, arquivando-
a como que para sempre na estante.

– Que petulância, que despautério! – pensava a Mulher Livro.

Depois que o tal leitor havia gozado, graças ao seu corpo e conteúdo,
numa relação de alguns dias, já que o leitor era um tanto
lento, e considerando que, seu conteúdo era um tanto farto, resultando
assim em uma semana de romance interno e externo.

Estando assim satisfeito, lhe dava as costas, como algo vencido
e superado em sua medíocre vida de leitor faminto. Mais um, mais
uma, e partia para a outra prateleira a usufruir mais um corpo, para
se deleitar de outra ostra literária.

– Não se abram! Não se deixem levar! Não se entreguem! – exclamava
a Mulher Livro ao ver-se descaradamente sendo trocada
por outra, ou por outro.

– Quanta promiscuidade! – Mesmo em meio à multidão da estante,
sentia-se só e pensava lá com suas páginas: “Um dia ele quis
me levar para sua casa, sem poder impedir, fui. Sei que o que o
atraiu foi minha capa, é a primeira coisa que atrai alguém, em segundo
lugar foi o título...”

– Incrível como os ditos seres humanos ainda se prendem tanto,
e agem tanto, movidos por títulos!

Chegando em seu lar, ele desnudava-me, acariciava-me página
a página com suas mãos de pianista, tocando-me como um
instrumento raro. Conheceu-me totalmente por dentro, primeiro
desfrutando de minha contracapa, degustando minha introdução,
deliciando-se com minhas linhas e entrelinhas, devorando-me em
capítulos, fartando-se com brilho nos olhos a cada revelação, depois
chegou comigo ao prazer final, salivando com tal ambrosia
literária, com olhar malicioso e saciado.

Não abriria-me mais com suas mãos, não colocaria mais seu
marcador de couro dentro de mim, dividindo-me em partes. Então
segurou-me fechada, e assim descansei um bocado de tempo,
quase adormecendo em repouso sobre seu sexo intumescido. Doce
ilusão momentânea, não me abriu mais, não me tocou, apenas arquivou-
me como tantas outras, como tantos outros.

Sendo assim, seria tudo ou nada, atirei-me quando ele passava,
com reflexo ligeiro, este amparou-me com palma macia, não resistiu,
abriu-me, vociferou uma de minhas partes mais prazerosas,
não resistindo, manteve-me aberta, a devorar-me novamente.

Assim, levou-me novamente para sua cama, sorrindo. Era só
isso que eu queria, mais uma vez. Havia valido a pena esperar, já
havia se passado cinquenta anos, até atirar-me à sua frente após
decidir o arriscado suicídio com final feliz.

– A volta da Mulher Livro!

Não sabia quanto duraria, mas quem sabe? Poderia tornar-se
seu livro de cabeceira definitivo, e deitado sobre o criado-mudo e
sob o despertador calado, eterno triângulo amoroso adormecido
ao lado do amado leitor envelhecido.